quarta-feira, 12 de dezembro de 2007



BICHOS ESCROTOS


Tinha 5 anos quando sentou naquela cadeira pela primeira vez. O coração partido. No entanto, passou 2 semanas desenhando e logo foi liberada. Sobre a declaração enfática da psicóloga: “ Sua filha tá ótima com o divórcio.Não tem nada.Quem precisa de análise é você”, metralhava nos ouvidos da Mãe.Palavras que durante muito tempo viraram ecos na língua do Pai.Como que pra vangloriar a filha - no íntimo – rachava o elogio. Eram parecidos. Não tinha problema a pequena.Brincava, desenhava, livrava-se do jargão de “criança-problemática-portadora-de-análise”.

Mas a verdade é que depois disso, ou mesmo muito antes, a moleca sempre sofrera de amor. Passava mal, tinha sintomas. O tempo se arrastou e aos 13 anos não houve jeito.Voltou. Como que por nada o Pai perguntou se queria fazer terapia. Sem querer, consentiu.

Entrava, assim, para nunca mais sair. O seu distúrbio?Amava demais. A paixão lhe dava tonteiras, fraqueza, uma aparência amarelada, aquela coisa estufada. O bando de barulhos estranhos que existia dentro dela. As pessoas que era levada a pensar todo dia. Desfigurá-las, ou reiventar-se?

Raras vezes foi uníssona com a vida. Tudo era muito dissipado, com ininterruptas cisões. Teve medo de perder as coisas e ficou muito apegada a si.

Com 16 detectou o motivo de seus lapsos. A sua dor, a sonolência típica, a falta de concentração vinham de algum tumor incrustado no seu cérebro. Desde a infância?! Só podia ser! Aquele eterno estado de despedida, a tristeza hereditária, o autismo alimentado. Tudo isso sempre tivera uma explicação plausível.

Não contou para ninguém, a não ser para a médica, que a induziu a manter segredo. Então, deu início às despedidas, chorava dizendo “eu te amo” para os parentes e declarava em tom de partida para Ele de fronte ao espelho: “ eu te escrevendo carta de amor e você insistindo em inexistir...”.

Superou. Recebia uma redenção! Enfim, ia para o divã! Sentia êxtase só de pensar nisso. Uma felicidade estranha, uma sensação de recomeço. Havia 5 anos que ia naquele lugar e nunca o desfrutara. Aquilo pra ela era quase uma passagem espiritual.Um livre-arbítrio?!

Até que veio a notícia fatídica: a madrasta – figura desestruturante e sem sal – teve com o divã já no seu segundo mês de tratamento. Entrou em pane. Sentiu náuseas. Falta de ar. Anemia.

Em crise, teve uma revelação: de fato, o que possuía era um aneurisma. Ah todos esses anos se equivocou com os indícios. Mas, dessa vez ia até o fim! Partia pra cima, pro exame!A sua tão procurada disfunção cerebral era algo grande, fatal! Tinha certeza.

No fundo, no fundo, admitia: achava um máximo essa história de morrer cedo. Aquele jeito poético de não ir até o fim, de não ter que falhar.Era profunda demais pra viver.Casar? Ter filhos?Como? Era circuncidada pro amor, fora castrada aos 5.

Desistia. Aos 20 se tornou foragida, até hoje não se sabe se por falta de grana, ou, vontade própria. Mas sabia que pelo diagnóstico da psiquiatra, de lá só sairia na casa dos 50 e achou aquilo muito tarde para começar a viver. Todo aquele preparo, a imutável perturbação.

Deduziu que defeito era personalidade e numa crise de riso trancada no banheiro descobriu: sofria de uma verminose qualquer.

Transformada, sem aqueles bichos escrotos, expurgava pra si a Extrema-unção!



“Olho na pressão, tá fervendo, olho na panela. Dinamite é o
feijão cozinhando dentro do molho dela”. (Lenine)

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