sábado, 26 de janeiro de 2008

NATAL MORTO

Morreu no Natal, e o que fica? São os minutos perdidos ou a vida concluída?
BR 101, 24 de dezembro de 1998, sentido Vitória X Rio.Estradas se confundem, rodovias se enchem na ansiedade do próximo dia.Caminhões se agridem na correria natalina de entregas.Escorregam nas curvas anti-retilíneas famintos de família, com destreza incerta.

O caminhoneiro sente o cheiro de casa e vira à direita, suspira um perfume de mulher e curva à esquerda. Sucessivos movimentos condicionados, esforços e sonolência medicada que o remetem à alienação social. Esta passagem existe para que não se disfarce o real proletário de João, ou será Antônio o seu nome?

11:00 H da manhã, o caminhoneiro já mais que desnorteado pelas noites não dormidas, num lapso qualquer de vida se distrai: lembrando da morena que conhecera da última vez, no mesmo lugarejo. E absorto acelera, visando como sempre o prazo de entregas. Sim, trabalha em dia de festa. Porque sua miséria não sabe o que é natal. Não o reconhece.

24 de dezembro de 1998, véspera no lugarejo do mesmo natal. Um homem olha a mulher em frente ao fogão e sai. Pega a bicicleta, pensa no serviço da horta... “Ah a dona se zanga quando ele atrasa.Da última vez foi a fia que tava doente, daí a dona nem ofereceu café.” Ele ficou pensando ser birra.O homem, será Antônio ou João o seu nome?

O dia era cinzento, assim como o seu acontecido. E tava tudo tão nublado mesmo que até parecia propício à situação. Como se tivesse que ser e o cinza fosse de propósito. Mas o calor não negava, era verão. Mas, para João ou Antônio o dia até ganhou um frescor, na verdade ficou quase frio e eles até sentiram um arrepio de dentro.

Então, João Antônio pensou em comprar uma galinha lá na dona nininha prá mó de comê com a família de noite, por causa que nessa época, carne de peru só se for o pescoço. Pegou a BR 101 em direção ao aviário. Porque o seu natal não sabe o que é a sua miséria. Não a agradece.

Antônio João vê o amanhecer quase todo dia da boléia de seu caminhão e é quase igual ao mesmo sol que João Antônio vê nascer na época da lavoura. João Antônio tem 6 filhos, e Antônio João tem só 5. Mas a dificuldade de dá o que comê é a mesma.

Mas, o fato é que João e Antônio se encontraram de forma abrupta, prá sempre. Tornaram-se um só, como se já não bastasse o mesmo papel social. Como se não aleijasse carregar a ambição do mundo nas costas. E abraçaram-se em silêncio pra não ecoar a dor sistemática dos mal-tratados em operação. Pra não vazar que nas entranhas dessa vida é tudo preto no vermelho.

Antônio atropelou a vida de João, e a morte de João atrapalhou a vida de Antônio.

Os pedaços do homem se uniram com força à aspereza do deslize do asfalto.Sua cabeça entreaberta jorrou a cor da tragédia. O vermelho vivo não ficou em prol do morto. Foi a morte vermelha que avivou João. E veio tanta gente, deram tanta atenção, que o mundo todo por um momento o conheceu. Olhou João. E pra quem viu a cena, o arregalado dos olhos incorporou-se no estraçalhado do chão. O corpo, de fato, parecia quase intacto, se não fosse pela mente desamparada. Estatelou-se, também, o vil do dia.

Antônio como cabra-macho que é não fugiu, e João como cabra-macho que fora não chorou. Sua morte foi sua ceia, às 12:30 H, na BR, mas não atrapalhou o trânsito.Morreu rápido, dispensou ajuda como patriarca que se preze.E que fique claro: morreu na mão, porque sua vida sempre fora direita.

Desafiando a contramão de seus percalços, será a via da vida de um, contraditória à guia do outro? Tem sinal fechado pra quem anda lado a lado?Suas frustrações colidiram pré-determinadas na fome ancestral. Somaram-se como que para uma revolução. Partindo caminhos. Mas veio o padre e disse ser chamado, Jesus, absolvição. Mas perdão de quê? Fez sinal da cruz, ficou triste e foi comer.

E quando as crianças chegaram foi como se ainda tivesse acontecendo, a morte viva, a cena nítida gritando adeus. O palpitar gemia desde os rumores do acidente há 9 minutos atrás. Foi só o tempo de montar na bicicleta e o chuvisco começar. Aquele monte de criança correndo. Cada qual achando ser seu parente. Porque ali quando não é parente, é amigo, e se não é amigo, é vizinho. O desespero toma conta e tem razão de existir.

João assassinou Antônio, ou Antônio matou João? Quem sabe? Tinham a mesma função. Qual não mataria o outro primeiro se pudesse voltar atrás, bem lá atrás, quando a pressa do emprego não havia atingido os dois? Mas, afinal quem morreu?Qual a sua graça? Tanto faz, a impessoalidade intrínseca no seu nome é abençoada pelo sistema. A ausência do seu sujeito é alimentada por mera estatística.

Mas dizem que se a vida é sofrida, a morte é bem-vinda. Ganha-se em dobro. Então quer dizer, que depois que morre é que se vive? Só sei que prá mulé e seus fios não foi uma boca a menos que se foi, e sim todas as refeições. O homem não passou no jornal, na televisão. Ele não é notícia. Seu perfil é por demais comum, o seu morrer é informação sublimada pelos presentes de natal.

Asfalto, comida, menino, pescoço, horta, desemprego, pressa, atropelo. Mas morreu de quê o desespero?!

Por fim, o homem virou número estático: “mais de 121 acidentes ocorreram na BR 101, no último dia 24”. E quando sua família ouvir no rádio só vai querer saber, ao menos, qual o seu número? Será João ou Antônio o primeiro ou o último?

E todos os anos é a vida de João que vai, ou a vida de Antônio que fica mais do que deveria? E quando eles se vão, é pra quem viver?